quinta-feira, 24 de maio de 2007

NO INÍCIO… ERA A PALAVRA


Agora que penso nisso, relembro-me que a minha paixão pela escrita salvou-me a vida. Ou pelo menos devolveu-ma.

Num dos períodos mais difíceis e dolorosos da minha vivência, quando fortes tempestades e dúvidas imensas me assolavam por dentro, quando os mais queridos se me apagavam em catadupa e todas as portas se me fechavam, procurei ajuda.

Graças a Deus, bati então à porta certa, seguindo um simples anúncio num jornal local, provavelmente e passo a redundância, no sítio mais improvável. Conheci a Dr.ª Maria José Rodrigues que ainda hoje considero como a uma segunda mãe, que me revelou o mundo fascinante da psicoterapia analítica e me lançou numa descoberta vertiginosa de mim próprio. Salvou-me porque me afastou das doses cavalares de medicamentação com que se tratam muitos casos análogos na medicina convencional e que muitas vezes acabam por complicar ainda mais a situação, dando azo a efeitos colaterais que suplantam o nível psíquico e se instalam em efeitos físicos secundários que alteram a vida dos pacientes para sempre. Apenas com recurso à palavra e à interpretação da nossa própria realidade, bebendo da psicanálise de Freud e dos seus mais directos seguidores, acompanhou-me numa viajem difícil mas recompensadora que me fez compreender melhor o que me estava a acontecer e a olhar o futuro, olhos nos olhos, sem medos. Recordo que a princípio, as coisas são tudo menos fáceis e que cada caso é um caso que é preciso trabalhar mas só depois de se desenvolver o método terapêutico mais adequado. No meu caso, descobrimos em conjunto e nesse esforço conjunto que a melhor forma para me exprimir era através da escrita.

Falávamos muito nas sessões de trabalho, seguia as suas orientações específicas e quando chegava a casa, derretia-me frente ao computador em libertadoras catarses onde descarregava tudo aquilo que conseguia debitar num frequência quase frenética. Guardava esses memorandos nuns envelopes castanhos de papel pardo que lhe entregava para análise futura, em cada consulta. Até que um certo dia, três ou quatro meses passados, deixei de ter que lhe dizer, despedimo-nos e dissemos um até sempre ficando eu com uma dádiva de gratidão que nunca poderei pagar em vida.

Contou-me que nas suas dezenas de anos de experiência e nas suas largas centenas de pacientes, nunca tinha encontrado um caso que se tivesse resolvido num tão curto espaço de tempo, não porque não fosse particularmente doloroso, mas sim porque houve de facto uma sinergia muito forte entre ambos e porque houve uma via, através da palavra escrita que foi uma verdadeira auto-estrada para o sucesso do processo.

Lembro também que durante todos estes anos de profunda e intensa relação mãe-filho com a minha progenitora natural, que tantas vezes foi de choque mútuo devido à força das maneiras de ser, resolvemos tantas vezes as nossas quezílias através de papelinhos que deixávamos espalhados pela casa. Sempre escrevendo. Nunca falando.

Foi também esse jeito quase inato de “amanhar” as frases que me fez, algumas vezes, chegar de rompante aos coracõezitos adolescentes que convenci em tempos de estudante.

Vejo-me assim chegado agora a esta fase pós-desabafos, em que redescobri o prazer da escrita, em que lhe voltei a sentir a falta e a companhia. Nasceu assim a vontade de não a perder e foi então que me lembrei desta reencarnação, tipo uma segunda vida ainda mais informal e pessoal, com edição exclusiva na net. Ainda só passou um dia mas já lhe sentia saudades. Tantas vezes me repeti a mim próprio que devia descansar disto, e já os dedos me fugiam para a doce tapeçaria salpicada de teclazinhas cinzentas, com tantos caracteres por descobrir.

Para quem ainda tem a santa paciência de me aturar, essa longa lista de amigos que sei que aí estão, há uma história que gostava de vos contar em segredo, aqui e agora que ninguém nos houve…

No Serviço de Finanças de Nisa, no Largo Heliodoro Salgado, esse ilustre desconhecido, descobri o melhor ambiente de trabalho que jamais conheci na vida. Cada funcionário era um mistério e um fascínio embora parecessem mais vezes personagens de banda desenhada, cheias de trejeitos e cenas cómicas, nas quais tive o gosto de me poder incluir. Grandes amigos ali fiz, espero sinceramente que para toda a vida, que revejo sempre com alegria e saudade. Hoje! Porque então, sobretudo no grupo mais chegado, havia sempre uma disputa, uma jogo do empurra para o ridículo, para ver quem fazia a maior figura de parvo, quem era “o que dançava no meio da roda”. Assim, perseguimo-nos muitas vezes numa travessura de gaiatos, a tentar apanhar uma frase mal dita, um erro de ortografia, um falhanço nas contas dos emolumentos. Paguei durante meses a minha ignorância em fracções que com eles consegui aprender na ponta da língua e da qual já falei na outra encarnação. O ter escrito algures “séptimo” com “p”, é uma cruz que ainda hoje tenho que carregar cada vez que por lá passo.

Pois bem, foi neste clima de guerrilha que uma vez vi entrar na repartição, uma das minhas maiores referências de infância que entretanto se mudou de armas e bagagens para Nisa, depois de casadinha: a Ana Maria. No meu tempo não havia infantários. Eu ainda sou do tempo em que não havia ATLs e Prolongamentos de horários. Havia então as mestras que nos aturavam e ensinavam o que sabiam de escrita, contas e leitura e a Ana Maria, que me levava 20 anos e morava ao fundo da minha rua, foi a minha primeira e mais querida mestra e acho que também a minha primeira paixão, ao ponto de me querer atirar da janela da minha tia (que morava em frente), de cada vez que a via atravessar a rua para ir à mercearia, tal era a vontade de a acompanhar! Foi essa Ana Maria que ali me cumprimentou emocionada e logo a canalha se agigantou para ver se lhe sacava alguma coisa. E ela, coitadinha, sem se aperceber da voragem inimiga, não fez a coisa por menos: caiu de queixo na esparrela e assim que abriu a boca, deixou escapar de rajada que o que eu gostava mesmo era de vestir saias e ouvir até à exaustão, um disco do Sérgio Godinho que comprou no Círculo de Leitores. Ou seja, decretou ao balcão a minha pena de morte que levou os outros às lágrimas, em glória.

É duro. Mas eu digo mais. Para além disso, adorava também ver os desenhos animados do coiote e da avestruz ou lá que raio era o pássaro, porque achava fascinante como é que eles nunca morriam. Mesmo que lhe rebentasse nas mãos uma carga de dinamite do tamanho de um frigorífico, ou lhe caísse em cima um pedregulho de dimensões astronómicas, ou se estatelassem no fundo do mais fundo dos desfiladeiros, ao ponto de só se ver uma nuvenzinha de fumo ao longe quando batiam no chão, renasciam de imediato na cena seguinte, em alta velocidade, auto-estrada fora, ou na espera paciente no alto de uma ravina.

Sempre me fascinou essa capacidade de regeneração.

Os desabafos acabaram. Se calhar é por esse fascínio, que a história continua aqui.

Bem vindos!

2 comentários:

John The Revelator disse...

O "desabafos" era assunto demasiado sério, e tu sabes bem que eu dessas coisas não gosto muito. Mereces os meus parabéns publicamente, já que em privado os dei muitas vezes. Agora se vens para aqui abrir o baú dos segredos.... meu irmão vou ter que comentar! Essa das saias está monstruosa! Abençoada Ana Maria. Só não percebi bem esta parte "Foi também esse jeito quase inato de “amanhar” as frases que me fez, algumas vezes, chegar de rompante aos coraçõezitos adolescentes que convenci em tempos de estudante." Hahaha Brutal

Venham mais posts! Este blog entrou directamente para o meu TOP 3.

Anónimo disse...

Saias não, FATOS DE SEVILHANA se faz favor!!!
Com direito a pintura de olhos e tudo!!
Esta riqueza, maluca que é!!!
AInda não perdi a esperança de ter um filho teu...
Bitchi