quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Viagem a Lisboa III - “Os Jerónimos e o Luís Vaz”


Entro no café da frente e recordo um jogo que fazia habitualmente comigo mesmo nesses tempos de estudante, para fugir da solidão. O tempo que passei em Lisboa foi de clausura auto-imposta quase total. Muito trabalho, muito marranço e solidão, num longo e lento crescimento interno sacado a ferros. Esse jogo consistia em olhar para as pessoas e imaginar quem eram, de onde vinham, o que faziam e no que estavam a pensar. Jogava-o nos cafés, no metro, no autocarro, no comboio e onde calhava. Jogava-o quando estava aborrecido. Acho que o jogava em toda a parte. Já estava destreinado mas voltei a jogá-lo com a rapariga que me serviu o café. Não devia ter mais de 20 anos. Pensei, “deixou a escola cedo demais”. Estava a fazer um frete do caraças e tinha na cara escrito em letras grandes que estava mais do que deserta de se pirar dali. Servia as bebidas com o ar de quem ia ser chicoteado antes de passar a noite na solitária. “Aposto que mora nos subúrbios, que o pai a trata mal e está ali a trabalhar por cunha. É sobrinha do dono, e há uma coisa para resolver entre os irmãos que foi paga com este emprego”. Tem um brinco no lábio e umas olheiras fundas. “Deitou-se tarde. Está grávida do namorado e…” Já não joguei mais porque um velho ao meu lado pediu mais uma ginja e eu pensei que tenho mais que fazer. Sendo assim, fiz-me à rua.

Os Jerónimos, o Mosteiro dos Jerónimos é um daqueles monumentos a que nos habituamos desde crianças e aos quais jamais seremos capazes de reconhecer o devido mérito. Parei-me a contemplá-lo e reconheci que é de facto algo de muito magnífico. Aquela bizarma respira Portugal por todos os poros. Um verdadeiro gigante que olha dali o Rio e avista o Oceano, para perpetuar a memória e a valentia dos portugueses. Construído no séc. XVI, por encomenda de D. Manuel I (Obrigado, Dr.ª Catarina Machado!), depois da chegada de Vasco da Gama da Índia, presta tributo aos descobrimentos, à era dourada do espírito português, quando mostrámos ao mundo aquilo que éramos capazes. Quais Ronaldos, quais Mourinhos, aqueles sim que eram rijos, para mandarem tudo às urtigas e “enfeixarem-se” de cabeça para o desconhecido. A porta lateral é notável e merece bem que se gaste a vista a admirá-la. Entro no interior da Igreja e pasmo-me com a sua altura e magnificência. As igrejas são sempre sítios especiais, pelo menos para mim. Esta é da primeira liga.

Olho para o lado e vislumbro o túmulo do Luís Vaz de Camões, o campeão aquele. Lá estava o túmulo, com o corpinho tal e qual só que em pedra. Descubro então que o gajo era mesmo muito parecido com o António Variações, ou o contrário porque este sempre nasceu primeiro, tem razão. É, a barbinha e o cabelo eram tal e qual. Até me imaginei a vê-lo a saltar lá de dentro e a cantarolar “a cabeça não tem juízo” mas desisti porque me pareceu de mau tom. Há, no entanto, coisas indecifráveis, verdadeiros mistérios da humanidade. Por exemplo, porque motivo meteram quatro leões agachados a suportarem a urna do homem. Sim, porquê? Não faz sentido e é feio. Quatro águias reais a içarem-no com correntes de ouro não era mais dignificante? Eu também acho que sim. Outra, porque motivo lhe colocaram uma almofada por debaixo da cabecita. Era a pedra que estava fria, era? Mas se estava morto, tanto lhe dava, não? Uma última observação: a julgar pelo tamanho dos sapatos, o bicho devia de dormir de pé! Calçava para aí o 44! Granda pata! Livra!

Descubro algures que o Fernando Pessoa também por ali está sepultado. Bem me tinha cheirado a bagaço e a absinto! É por estas e por outras que o nosso sistema de ensino falha. Se quando os jovens começam a estudar a prodigiosa poesia do génio, em autêntica catadupa, lhes fosse dito que o gajo era um dos bêbados mais empedernidos que já puseram as patas em solo luso, a malta começava logo a achar que o bacano era um 5 estrelas e a coisa marchava muito melhor. Não pensam, os governantes…

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