segunda-feira, 31 de março de 2008

A ferro e fogo


Por cortesia de um estimado amigo de sempre, também bastante apanhado por esta devoção cinéfila, assisto comodamente instalado no meu sofá, com o portátil no colo, à fita consagrada na última edição dos Óscares, acontecida há apenas umas semanas atrás.

Sinais dos tempos…

Quando era mais jovem, esbarrei muitas vezes com desgosto nas montras dos discos aos quais não podia chegar na quantidade desejada e nos cartazes dos últimos lançamentos cinematográficos que estreavam sempre tarde e longe demais para mim. A indústria dizia: “adapta-te!”.

A coisa deu a volta. Os instrumentos que possibilitam o acesso à técnica evoluíram mais rápido que a própria, democratizaram o processo, levaram-no às pessoas e agora está tudo irremediavelmente perdido para eles e ganho para nós.

Salve aleluia!

“Adaptem-se!”, digo-lhes eu entre dentes enquanto me ajeito para encontrar a melhor posição da almofada. Ah, belos tempos para se viverem.

O filme é muito bom, mas isto não é novidade para quem conhece o trabalho desta dupla endiabrada de irmãos que assinam aqui o seu exercício de estilo “mais que perfeito”. Inteligente, visceral, belíssima no trabalho de câmara e na gestão da narrativa, esta é uma obra de arte que perdurará entre as fitas mágicas que merecem o Olimpo do celulóide.

A narrativa é do mais simples e por esta altura já toda a gente sabe que anda tudo à volta de uma mala cheia de dinheiro e a confusão que se instala à volta, gerada por todos aqueles e mais alguns que estão capazes de tudo para lhe deitar a unha em cima.

Em termos cinematográficos, não há uma ruptura do universo desta dupla de criadores mas antes uma súmula dos muitos quadros que foram pintando ao longo da sua extensa carreira. Recordo aqui a sua predilecção por esta aridez da paisagem que tanto me marcou quando os conheci, há muitos, muitos anos atrás no tresloucado “Arizona Júnior”; e encontro um grande paralelismo com o fabuloso “Fargo” sobretudo ao nível da caracterização, da rudeza e da violência latente nas personagens; do “non sense” que se instala à volta deste suspeito “Jackpot” de azar; e da necessidade de recorrer a grandes planos da paisagem que contrastam com os movimentos rápidos de câmara nos momentos em que a acção galopa. E de que maneira galopa…

Concordo quando o coro de vozes se levanta para dizer que este Chigurh que Bardem criou com uma espantosa contenção de recursos é digno de entrar directamente para a galeria de ouro dos psicopatas mais tenebrosos da história do cinema. Estará, no entanto, na minha modesta opinião, a anos-luz do Hannibal Lecter que Sir Anthony Hopkins nos legou para a eternidade. O espanhol, certamente muito bem assessorado e ainda melhor dirigido, percebeu desde a primeira hora as limitações que condicionam o seu raio de acção artístico e moldou a personagem ao mínimo da evidência que ainda assim chegou para convencer meio-mundo. A mim convenceu-me mais ou menos e atiro uma para o ar para quem a queira apanhar: imaginem só esta personagem encarnada por um Rutger Hauer dos tempos áureos… Oh, sublime seria, não concordam? E se fosse eu que mandasse dava-lhe cabo da peruca que aquilo não ajuda nada a dar credibilidade à coisa. E eu quero lá saber se a obra original já o pinta assim! Quem conta um conto, acrescenta um ponto e eu metia-lhe assim um pente zero oxigenado que lhe ficava a matar, literalmente!

Podem vir com o Bardem que para mim, quem rubrica uma interpretação de encher o ecrã é mesmo o velhinho Tommy Lee Jones que rouba a fita a olhos vistos. Toda a dúvida e desassombro, toda a mágoa e incompreensão passam pelo seu rosto, pelo seu olhar e sobretudo pela sua expressão. Meus amigos e amigas, se eu fosse da Academia, este é que o levava mesmo que não estivesse nomeado porque o seu trabalho aqui é pura filigrana. Quando entra na morgue e fita o cadáver, basta olhar para ele para sentir tudo aquilo que lhe vai na alma e sobretudo, a responsabilidade de não ter cumprido a protecção que prometeu, não esquecendo a culpa de saber que se porventura tivesse chegado minutos antes, também ele teria sido apanhado no meio do fogo cruzado.

Sinais dos tempos e aquele país, como o nosso país, não vão mesmo sendo para velhos, com as grandes urbes a rebentar pelas costuras, com as “canhotas” a multiplicarem-se em cada casa e em cada esquina, com o dinheiro e a droga e a ganância e esses males todos que apodrecem as sociedades modernas por dentro a ganharem terreno. Vamos lá ver quem é que é o corajoso que se atreve a andar sozinho assim à noite ou a qualquer hora num desses bairros da periferia do Porto ou de Lisboa por agora, e do interior dentro em breve. Quem é que é o mano que anda assim descansado e seguro? Ninguém! E cada vez há-de ser pior. Com facas e navalhas já era mau mas sempre era preciso espetar, cravar, ir em frente. Um gatilho é só um clique, um gesto que tantas vezes vimos repetido na tv, é uma fracção de segundos e não deve de custar nada.

A verdade que muitos não querem entender é que não são só as grandes metrópoles que estão a mudar… é o próprio homem que está cada vez mais indiferente à dor e ao sofrimento alheio.

Eu percebo o Sherife Tom Bell quando faz aquela expressão preocupada de quem vai para lugar nenhum.

Às vezes, mais daquelas do que eu queria, também me sinto muito assim.

Nota do Professor Martelo: 4/5

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