Naquela altura eu estava a trabalhar em Castelo Branco como chefe de vendas da Opel, um emprego ao qual tinha concorrido num ímpeto, ao responder a um anúncio de jornal, depois de saber que me tinham “feito a folha” num concurso para a Câmara Municipal de Marvão. Desiludido, mandei tudo às urtigas e fui.
Eram 80 km para lá, 80 km para cá, muitos kms por lá feitos em serviço… era levantar de madrugada, era chegar à noitinha, extenuado, deserto de cama… Era duro mas era melhor do que a humilhação “caseira” que me empurrou para esta travessia do deserto.
Isto até um feliz dia… em que a minha Cris ligou a dizer que me tinham chamado das Finanças. A aprovação no concurso feito dois anos antes produzia finalmente efeitos. Se me tivessem dito, no dia em que acabei o curso, cheio de sonhos e ilusões, que iria trabalhar nas Finanças… o mais certo era ter-me mandado para baixo do “15”, o eléctrico que passava lá na Junqueira mesmo em frente aos ISCSP mas… que fazer? Como eu costumo dizer… a vida é complicada demais para vir sem um livrinho de intruções e o dinheiro faz falta a toda a gente... Pelo menos era seguro (parecia então) e mais perto de casa... de forma que nem pensei duas vezes.
E se eu tinha a impressão mais cinzenta possível do que seria trabalhar nas Finanças… O funcionalismo público já por si me entediava. As Finanças então… Devia ser só gravatas e números e secretárias repletas de pilhas de papéis… Medo!
Mesmo assim rumei a Nisa, ao serviço onde tinha sido colocado como estagiário.
Se já ia com uma ideia pré-concebida, ao olhar para o edifício tudo se tornou cristal clear como dizem os ingleses. Aquilo era um caixote cor de papelão bordado com ninhos de andorinha. As escadas de granito conduziam a um 1º andar encimado por uma porta que rangia. Entrei. Atendeu-me o meu querido (na altura ainda não era) Marquês.
- Eu sou o estagiário, disse.
- Vou já chamar o Chefe. Um momento.
E do gabinete saiu o Chefe… uma figura de baixa estatura, meia idade, calça creme ligeiramente à boca de sino com um impecável vinco ao meio, camisa branca, gravata cinza, blazer azul, sapato castanho envernizado, cabelo farto e amanhado para a direita. Estendeu-me a mãe direita e disse-me: “Venha daí”.
E eu lá fui, atrás dele, atravessando a repartição que naquela altura me pareceu um pavilhão imenso polvilhado por olhares que me pareceram mirar de alto a baixo. Diga-se de passagem que o caso não era para menos. Eu, no lugar deles, faria o mesmo. E no trajecto lá me fui assoreganhando, fazendo o meu melhor sorriso em jeito de apresentação. A minha mania de querer agradar…
O Chefe foi do mais cordato e gentil possível. Quis, naturalmente, saber de mim e deu-me alguns conselhos de primeira hora que procurei seguir à risca. A empatia foi imediata. Era impossível resistir ao seu charme e graça natural.
- Sabe que hoje é dia de compadres? Tomamos um café à saúde disso?
- Ehhh… sim. Acho que sim. (Como se fosse possível recusar uma gentileza destas a um chefe logo o primeiro embate).
Atravessámos a estrada e entrámos na Colmeia que vim depois a saber que em Nisa era conhecida como a 2ª Repartição de Finanças. Ainda hoje não percebo porquê.
Ao balcão, ainda a estudar-me, fez-me uma pergunta que haveria de ficar para todo o sempre como a pergunta fetiche (repetida à exaustão) de uma private joke minha e do estagiário que haveria de chegar dias depois, o meu querido amigo (que adoro como irmão) Rui Miguel Caixado Pescada (já o era antes de o ser…) Ribeirinho Pinheiro:
- Então diga-me cá uma coisa, ó Pedro Alexandre (tratava-me sempre pelos dois nomes)… Sabe quem foi Frei Luca Pacioli?
- Não faço a mínima ideia, Sr. Delfino.
- Ah… (suspirou com ar de descanso por saber que eu não estava ao seu nível e disse sorrindo): Frei Luca Pacioli foi o inventor das “partidas dobradas” que é o princípio básico da contabilidade moderna: diz que quem deve tem a haver.
- Sim senhor…- , registei com agrado. Já não me esqueço (mal sabia eu…)
Depois… conquistou-me de uma forma que me deixou sem defesas. Apresentou-me aos colegas, convidou-me a almoçar em sua casa (onde iria voltar inúmeras vezes pelo mesmo motivo e onde conheci a encantadora Dona Antónia que nos tratou sempre como filhos), e… a cereja em cima do bolo… nessa tarde, levou-me aos serviços públicos de Nisa (tribunal, GNR. etc.) onde me apresentou pessoalmente a toda a gente. Uma coisa à antiga, à séria… que eu adorei.
O Chefe Delfino entrou muito novo para as Finanças e cedo chegou a chefe porque era inteligente, culto, bem falante e trabalhador. Era um homem encantador, com um charme natural incrível. Mas o Chefe Delfino era também um homem atormentado pelo passado e sobretudo pela guerra colonial, por tudo aquilo que por lá viveu. Por vezes parecia que apesar da sua natural boa disposição, havia uma nuvem negra por cima da sua cabeça e isso fazia com que fosse depressivo, com que atravessasse períodos menos bons e procurasse o pior refúgio para afogar a dor.
Eu acho que de certa forma, sempre foi incompreendido apesar do esforço titânico dos que lhe eram mais próximos e o amavam para o entenderem. Ele, que era muito crente e religioso, vivia numa espécie de permanente via sacra interior.
Quando o conheci já estava muito próximo de se aposentar e a sua dedicação à causa fiscal não tinha o mesmo fulgor do início da sua carreira. Nessa fase era apenas uma presença. Para mim e para o Rui, uma presença agradabilíssima.
A coisa mais extraordinária nele era o sentido de humor. Acho que nunca na vida me ri tanto com ninguém como me ri com ele. Talvez apenas com o meu pai… mas o Sr. Delfino fazia e dizia coisas que me levavam às lágrimas. Tantas vezes, diversas vezes durante o dia.
Ainda hoje, quando me junto com o Pescada nalguma patuscada somos capazes de estar horas só a recordar episódios, frases e tiradas do Chefe Delfino. Éramos fãs. Mesmo! Como nos estávamos sempre a rir com ele, por vezes até temia que pudessem pensar que estávamos a gozar mas nada poderia ser mais errado. O respeito era enorme.
Em Nisa a coisa resultou e eu acomodei-me porque ali encontrei o mais fantástico ambiente de trabalho que tive em toda a minha vida. Cada funcionário era uma personagem (eu incluído, claro!). Ríamos tanto uns com os outros que aquilo às vezes mais parecia o cenário de uma sitcom americana ao melhor estilo “The Office”.
Quando me chamavam ao telefone eu sabia ao que ia.
- Pedro… é o chefe…
- Tou? Sr. Delfino?
- Está a ouvir, ó Pedro Alexandre… É capaz de me vir buscar cá a casa?
- Claro que vou, chefe. Em 5 minutos estou aí.
E eu adorava quando desligava e começavam todos em coro a gozar: “Vai, Ambrósio, vai… Não te atrases… Leva o chapeuzinho de motorista…”.
Se aquilo para mim era uma festa…
Não resisto a contar duas histórias que ajudam a traçar o perfil…
O chefe chegava sempre mais tarde, a meio da manhã. Certo dia, por volta das 10h, depois de algum pessoal ter passado uma hora inteirinha a cortar-lhe na casaca por alguns acontecimentos do dia anterior… saiu do gabinete que continuava às escuras como se estivesse vazio, impávido e sereno, com o ar mais enxuto do mundo e sem ninguém esperar, disse com a maior das descontracções: “Ó estagiários… vamos beber um cafezinho?”. Tinha jogado na antecipação e estado a ouvir tudo. Nem um comentário...
Outra vez, numa noite por altura das festas de Verão de Nisa, teve uma discussão com o Sr. Carita, o nosso colega mais conhecido na vila pela alcunha de “Tonho Espanhol”. No dia seguinte chegou à repartição bem mais cedo do que era habitual para nos dar queixa da ocorrência. Irritado, disse: “Eu sou chefe e vou castigá-lo. Mesmo agora lhe vou tirar a máquina de escrever que ele tanto gosta por ter o teclado AZERT”. Pegou na máquina e a muito custo levou-a para o gabinete onde a confiscou no pequeno sofá que ali tinha. De seguida foi à casa de banho, com ar triunfante pelo feito. Nesse entretanto chegou o nosso colega Marquês, indisposto pela intensidade das festas e decidido a sentar-se um pouco no sofá do chefe, deu com a máquina do colega Carita que naturalmente repôs no local habitual. Agora imaginem a cara do chefe quando saiu da casa de banho e viu a máquina de regresso à secretária como por dotes de magia… Imperdível! “Já aqui está? Esta FDP?”.
A última vez que estivemos juntos foi há uns dois anos atrás, quando o convenci a vir almoçar comigo ao Sever, ele e a Dona Antónia. Passámos uma tarde muito agradável. Trouxe-os a minha casa. Estive para o ir visitar à Psiquiatria quando esteve internado há uns meses atrás mas preferi não ver naquela situação de debilidade. Ia ser duro para os dois. A esposa lembrou-me isso no dia do funeral: “Ainda bem que não o viram ultimamente quando ele estava mais em baixo. Ele gostava tanto de vocês que até lhe ia custar que o vissem assim…”.
De maneira que é dessa outra forma que eu o vou lembrar... como ele era... de Raybantes verdes, cigarro ao canto da boca, no seu impecável blazer azul com o alfinete do clube Lions, a beber um branco traçado natural com gasosa fresca… como se estivesse a dizer-me (como tanta vez o fez…), “Está a ouvir, ó Pedro Alexandre, sente-se aí e converse comigo”.
Saudades, chefe. Quem me dera ter conseguido arranjar tempo para ir ter consigo mas a vida é mesmo assim. Quem é que nos havia de dizer que partia tão cedo… Deixa-se andar mas nestas alturas… há sempre vagar. E eu lamento tanto...
Quanto ao frei Luca Pacioli, na chegada do meu colega estagiário, um ou dois dias depois de mim, ouvi precisamente no mesmo balcão, a tal pergunta da praxe:
“Ó Rui Miguel. Sabe quem foi Frei Luca Pacioli?”
“Não faço a mínima ideia, Sr. Delfino”.
E… virando-se para mim…
“E você sabe quem foi, ó Pedro Alexandre?”
“Se eu sei, chefe? Claro que sei! Foi um frade italiano que inventou as partidas dobradas, o princípio básico da contabilidade moderna. Como é que eu não ia saber isso?”.
E ele, boquiaberto, virou-se para o Rui e disse baixinho: “Está a ouvir? Este individuo tem uma cultura extraordinária!”.
Até sempre, amigo!