quarta-feira, 25 de junho de 2014

Zé Manel Gavancha


Soube que estava menos bem de saúde, que lhe tinha dado “uma coisa qualquer”. Porque sou amigo preocupei-me. Mas a falta de tempo fez com que houvesse sempre um… mas. Ou o trabalho, ou as filhas, ou a vida me levaram a saber sempre mais de mim e a não me preocupar em saber mais… dele. Depois, nesta terra pequena sofre-se do mesmo que nas outras terras pequenas e o boato começa a ganhar força de facto. Que estava melhor, que estava muito mal, que teve uma recaída, que lhe tinha dado outra vez.

Há semanas encontrei a mulher e a filha junto ao posto da GNR e pude saber mais ao certo, em concreto. Que estava melhor e internado na Anta da Beirã. “E recebe visitas? Hei-de lá ir vê-lo.”

Encontrei durante esta semana nas finanças, uma empregada que me garantiu que poderia lá ir a qualquer hora. “Assim que for ver as minhas tias à Beirã com tempo, hei-de lá passar.” E foi no sábado.
 

No caminho parei-me, sentei-me a olhar a estação e reencontrei uma beiranense com idade para ser minha avó que comentou comigo o inevitável nestes casos: como era e como está aquela que há-de ser sempre a nossa terra. Fomos andando e voltei a sentar-me já a sós, para ganhar tempo e fôlego para o que iria encontrar. Reparei que me tinha esquecido da net ligada no telemóvel e recebi um comentário do Brasil à imagem de perfil que tinha acabado de meter no facebook, com uma camiseta do Cachaçafest do Piauí de 2008, ano da minha visita lá. Se é verdade que a internet é a maior invenção do meu tempo (a roda já lá vai há muito e os computadores já existiam quando eu era puto) e transforma o mundo numa aldeia global, o facebook faz dessa aldeia uma rua. O Brasil é logo ali, logo aqui no meu telefone.


Mas eu ia a outra coisa. Olhei o edifício de fora e pareceu-me enorme. Maior do que o imaginava. Assim olhado de frente, e não de passagem de carro, parece que a dignificação o tornou ainda mais alto, mais importante e imponente. Respirei fundo e entrei. Uma senhora muito dócil de mais de meia idade perguntou-me o que queria e mandou-me sentar numa salinha de espera, pequena, simples mas muito confortável com poucos adereços. Olhei pela janela e fui pensando. Pensando que curiosamente a Beirã de hoje parece ter sido abandonada pela Beirã saudável e próspera do meu tempo mas aquele edifício que foi residência dos alfandegários na minha meninice e abandonado na minha adolescência, renasceu agora fruto do trabalho de uma associação à génese da qual a minha mãe esteve ligada porque nasceu da vontade de um grupo esclarecido de amigos que hoje é o santo graal da Beirã. Sem ela, provavelmente já não haveria nada ali.



Estava expectante. Horas antes tinha ouvido ao balcão do Adro, onde bebi café que o Zé estava mal. Quão mal estaria ele? Será que não conhecia mesmo ninguém como comentavam? Aquela sensação que os segundos pareciam horas… O Zé chegou acompanhado, numa cadeira adaptada à sua condição. Achei-o mais magro, com os olhos salientes que sempre o caracterizaram a parecerem ainda mais esbugalhados na cara esquálida. Os seus problemas com a visão, muito castigada pela diabetes, amorteceram o não me ter reconhecido logo. Foi a voz.

“E o senhor, o que lhe é a ele? Família?”
“Amigo.” (com A grande… há muitos anos. O Zé Manel zangava-se quando eu o tratava por você. “Epá não consigo que sejas tu, o que é queres? Acho que é do seu bigode. Mete respeito.)
“E o seu nome?”
“Pedro. Pedro Sobreiro”
As palavras surtiram nele o mesmo efeito que o “Abre-te sésamo” dos 40 ladrões. O meu nome despoletou um efeito que lhe abriu a gruta das emoções. Ainda com algumas limitações na mobilidade, foram os olhos ou a emoção que caiu deles em catadupa que abriram o jogo. O Zé Manel estava lá, aprisionado naquele corpo que o limitava mas com o mesmo cérebro, o mesmo sentir, o mesmo coração. A amizade, o querer bem aproxima muito as pessoas. Às vezes, faz delas mais próximas do que se fossem família. Cada lágrima era um grito de revolta por se ver assim de um momento para o outro depois de ter sofrido tanto com a saúde, um lamento, uma dor. E ficámos ali assim em silêncio, os dois, de mãos dadas. Ele a gritar em silêncio com os olhos fitos no nada e eu a olhar para o chão, para não interferir com aquele momento tão íntimo, tão seu. Muitos minutos muito grandes.

Silêncio e dor.

Quando voltou a pouco e pouco a si, foi respirando mais e mais fundo.

Dei-lhe espaço e vagar. “E então, Zé? Como te sentes?” foi a forma de entrar neste mundo ainda novo ao qual se está a ambientar. Com um discurso completamente lógico e compreensível, talvez um pouco limitado com a articulação das palavras, disse que se sentia muito bem apoiado e instalado. Disse que o apoio da família o motiva muito e que a mulher, a filha e o filho nunca o deixam sentir só. Disse-me que está à espera de ser avô nos tempos mais próximos e no rosto acendeu-lhe uma esperança que lhe fez brilhar os olhos. “É o meu filho… está quase a ser pai.”
“Mais um benfiquista, Zé! Tem de ser!”
Ele sorriu, disse que sim e a bola tirou-nos dali, fez-nos ir um bocadinho ao campo dos sonhos embalado pela paixão benfiquista que nos assola a ambos. Com a sua maneira generosa e bondosa de ser, fiquei com a impressão que ainda me perguntou pelas minhas pequenas mas a estrela ali era ele e não eu.  

“Tratam-te bem, Zé? Comes bem? Não te falta nada? Vês televisão? Ouves rádio?”
Disse-me que perdeu muito o apetite e pela falta de visão não se sente muito impelido a ler mas que a televisão é sempre uma boa opção embora os jogos do mundial sejam a horas difíceis. Relembrou-me de cabeça os jogos do calendário desse dia e afastou-me os fantasmas de que poderia estar menos bem de cabeça.

“Sabes o que te aconteceu, Zé?” (fiz um esforço pelo tu de há umas semanas a esta parte e tem resultado) e quando lho perguntei também eu não sabia ao certo. Provavelmente já me deveriam ter dito o que foi mas a minha cabeça já não é a mesma e quando perguntei, não sabia, de facto. Ele também não. “Achas que foi uma coisa que te deu? Achas que foi a tensão?”

“Não sei. Foi de tarde. Não sei o que foi mas acho que foi de tarde.”

O seu quinto Machado esclareceu-me depois no regresso à aldeia que foram 3 AVCs que fizeram mossa. Segundo soube, esteve no hospital já com sintomas e a triagem pode não ter sido exímia porque se repetiram. Agora está a recuperar, a apostar que a fisioterapia lhe consegue devolver alguma da qualidade de vida que perdeu.

De vez em quando olhava a janela e queria ver o que se passava lá fora. Mas senti-o machucado, como se um comboio lhe tivesse passado por cima.

Eram horas de jantar e ainda tinha de passar a ver as minhas meninas (de 84 e 86). Mas hei-de lá regressar. Com muito mais frequência. É nestas alturas que os amigos nos podem ajudar. E eu já estou a pensar no que lhe vou dizer em próximas conversas, que há-de passar muito pela ideia que apesar de tudo, teve uma nova oportunidade de ver as coisas que a vida ainda lhe pode dar, como um neto.


Tem 58 anos. O meu pai tinha 49 e naquela manhã só queria acordar. 

1 comentário:

Helena Barreta disse...

O meu pai tombou ao 4º AVC. As melhoras do seu amigo.

Um abraço