quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Escrever (ou a entrevista a ti...)

Marvão. 23.02.2014

E porque é que escreves?
Não consigo explicar. Escrevo porque me liberta, porque me ajuda a expressar aquilo que não consigo dizer pela boca. Escrevo porque quando tocam as teclas, os dedos como que se transformam em línguas e ganham vida própria. É uma sensação de catarse que não consigo explicar. Eles vão onde querem, sabem por onde querem ir e caem exaustos sobre as letras quando sentem que o trabalho está feito. Nunca tem um princípio e pode ter mil fins. Mas há um momento em que tem um.

E como pode essa necessidade ser por vezes tão grande, manifestar-se com tanta força, quando há dias que essa guerra parece que não é a tua?
Não sei explicar. Se há coisas na natureza que são inexplicáveis, essa, para mim, é uma delas. Parece uma possessão. Uma força, um ser, um ente que entra em mim e tem de ser expelido aqui, ali, desta forma.

Se ontem foi o trivial que te trouxe por aqui, de fugaz passagem por este limbo cibernético, porquê hoje a necessidade deste mergulho tão profundo nas águas gélidas deste lago tão quieto?
Porque algo me atormentou profundamente há dias e ainda não tive oportunidade de falar com quem devia. O tempo é escasso, o tempo urge e os compromissos do dia-a-dia, da voragem dos dias multiplicam-se. Não só não tenho procurado quem me possa ouvir com a profundidade que quero, mea culpa, como as oportunidades para tal não têm surgido e o tempo vai passando. Já entrei em contato com alguém que me garantiu que ia transmitir a quem de direito a minha preocupação e estou tranquilo. Mas eu sei que tenho de ser eu a auto-inflingir-me este exorcismo para que possa dormir melhor, respirar melhor, pensar e viver melhor.

E porquê aqui neste espaço que é público, tão aberto a todo o tipo de gente, incluindo a que te quer mal e se regozija com a tua afronta?
Porque eu sou assim. Trilho o meu caminho e sigo sempre pela rota que traço. Não me torço, não me vergo e nada temo. Não tenho vaidades e não tenho segredos. Sou eu. Amigo do meu amigo, um ser que se acha bom por natureza porque é incapaz de querer mal e fazer mal, lidando bem comigo e com os outros. Bem sei que é impossível agradar a toda a gente, nem eu o queria. Não deve haver coisa mais chata. Mas sendo público e um homem que sabe que comunicar é uma das virtudes que possa ter, confesso-me aqui com grande paz de espírito e à vontade. Esta minha taberna virtual, com tantos anos quantos os gravados no mural aqui do lado, é frequentada por bons amigos que sei que nunca a abandonam. Bem podem abrir MacDonalds e Telepizzas em tudo o que é grande superfície das redondezas que mesmo que lá vão… acabam sempre por voltar para um tintinho do meu primo Vitorino e uns passarinhos fritos.

Mas que ganhas tu em passares o tempo assim?
Olha, para já, poupo imenso. Nãos me encharco com caixas de drogas e drageias, nem ando a caminho de Lisboa falar com um cachopinho pouco mais velho que eu para me dizer que o que me fazia bem era um acompanhamento prolongado para algumas afinações. Como se eu fosse um relógio que um acerto nas roldanas e nos mecanismos alinhasse o pêndulo.
Depois, liberta. Mal feita a comparação, liberta-me como liberta uma beata quando confessa ao prior da paróquia que cometeu adultério. Não ganha nada mas o mal sai de cima.



A Filipa, ou melhor, a Drª . Filipa, diretora técnica do Lar daquela casa que é a santa e de Marvão, ligou-me a perguntar qual era a minha opinião em mudar a tia de quarto.
Respondi que compreendia. Confessei até que me causava alguma surpresa como é que a proposta para que tal acontecesse não tinha surgido antes. Na verdade, a sua colocação naquele quartinho para apenas duas utentes, tinha surgido por muita força minha no pedido para não defraudar as expectativas da sua irmã que desapareceu deste mundo quando ainda mal tinha aquecido a cama. Não foi na primeira noite, como ela tanto temia e a levou a implorar às funcionárias que não a deixassem só, gerando confusão e mal estar porque aparentemente não estava doente; mas foi na noite a seguir. A segunda noite na casa grande.






A Cali agora estava como uma companhia que não conhecia. Mesmo que conhecesse, já não seria capaz de se recordar como, quando e de onde. Por isso, agradeci a lembrança de a levarem para uma zona com instalações mais modernas, utilizada por utentes volantes, não limitados pela aliança a um cônjuge ou um familiar que os confinasse à zona de quartos.

Fui visitar e pareceu-me, de facto, muito bem. Continua o muito carinho no interior, bem patente em toda a gente que ali trabalha, coisa comum a todas as profissionais do edifício que me fazem sempre ficar com a sensação que se recebessem 5 vezes mais, não seriam pagas em excesso. Depois as instalações são mesmo mais modernas, com os quartinhos sempre muito asseados, com muita luz e arrumadinhos, já com diversas camas por cada um. Aliás, toda a instituição é toda ela um primor, um verdadeiro tesouro sem o qual teria hoje uma situação bem complicada de resolver.

Sábado passado, fiz-lhe a segunda visita naquelas instalações. Acompanhado da minha Alice que me pediu para me acompanhar (!) para ire ver a Ti Cali, a Ti Cali, a Ti Cali!!!!
(Que estranho?!) - Por saudades, Alice?
- Sim! Mas também quero andar no elevador! Eu ADOROOO elevadores. E há lá um!



A entrada é algo labiríntica, como é toda a estrutura da Santa Casa. Mas esta seção tem uns portões e grades que lhe dificultam a livre circulação e evitam preocupações de maior. Anda livre mas não tão em roda livre. Mais circunscrita, talvez. Pareceu-me tudo perfeito, tudo a ganhar forma e a ficar no ponto. Mas na visita deste sábado assustei-me quando a vi. Não a encontrei tão tranquila e tão distante quanto dantes, a brincar com as suas duas bonequinhas oferecidas pelas sobrinhas a quem ela as pode ter oferecido no passado, como se fossem filhas. Estava ela própria assustada e ficou aliviada quando me viu.
Afinal tu, alguém que me salva; parecem ter dito os seus olhos.
- “Ai vocês, ainda bem que aí vêm. Venham cá, venham cá.”
- “O que foi Cali? O que te aconteceu?”
 - “É ela…”, apontando para o espelho

A funcionária que estava de serviço, avó de uma amiga da Alice, disse-me entre dentes: “tem estado a falar toda a tarde com a irmã, que ela por vezes diz que é a mãe. Olha para o espelho e vê-as a elas. A gente leva-a mas ela volta…”

Quem é que me havia de dizer a mim que uma parte tão bonita, com uns roupeiros com espelhos, haveria de constituir assim um obstáculo tremendo à razão? Eu vejo as outras velhinhas sentadinhas, tranquilas, a verem televisão ou a fazerem crochet, e penso porquê não assim? Porquê esta inquietação, este desassossego, esta busca incessante do nada, do fio da meada que se perdeu no tempo?

Na estrada da vida, olho para trás e viro-me para a frente. Perdi um elo com apenas mais 7 anos que eu. Ou por aí, ou por aqui. E sendo certo que por aqui é muito mais fácil para quem está e ali pode rever a estrutura física que sempre amou, matando saudades do que ela já foi a cada reencontro; não consigo comparar qual das duas será mais dolorosa para a pessoa que a sofre.

Neil Young cantou "it's better to burn out than to fade away,". Kurt Cobain transcreveu as palavras na sua última nota em vida. Ele também pensava assim e certamente que ela prefere este doce apagar. Doce como sempre foi.

À Santa Casa de Marvão, a todos os órgãos diretivos e funcionárias quero deixar bem claro e bem expresso o meu profundo agradecimento. Agradeço por tudo, que é o que há para agradecer, do mais ínfimo detalhe a tudo o resto. Manter uma estrutura destas é um esforço diário monumental. Mas que resulta e é feliz.

O problema de que falo aqui é nosso, é com a doença, com uma guerra silenciosa em que uma pessoa se torna refém de si própria, de quem lhe tomou os comandos da aeronave sem dizer por onde ou para onde vai.

Há que fazer ajustamentos mas sei que com o tempo, e a boa vontade de ambas as partes, haveremos de conseguir acertar agulhas. Não tendo nunca tempo para coincidir convosco, desabafei aqui e de certeza que vou dormir melhor.

Chamam-lhe Alzheimer e até é assunto de Óscares e do dia.

Para mim, é demência. Ponto.

Seletiva. Mas demência. 



1 comentário:

Helena Barreta disse...

Assustam-me estas doenças que nos levam quem amamos ainda antes da morte.

Um abraço, Pedro.