terça-feira, 25 de outubro de 2016

Caly (e/ou como o tempo passa por nós)

O antes (e a assinatura)

O hoje (e a assinatura)

Quando entro naquela sala, elas estão sempre nos mesmos sítios, na mesma posição.


Sei que ali, comprovo de cada vez que lá vou, há muita higiene, respeito, amor.
Ali estão bem.
Bem agasalhadas, com uma temperatura ambiente controlada e mais que devidamente climatizada, estão como os ovos numa incubadora. Só que em vez desses, que estão à espera de eclodir para a vida, aqui aguarda-se o movimento inverso, de saída.


Eu sei que têm o dia-a-dia ocupado com atividades triviais, comuns aos demais mortais, que as preenchem. Sei que têm animações culturais diversas, para ocuparem os tempos livres com técnicos especializados, mas sei que muitas; como a minha tia Cremilde (que será sempre a Cali, ou Caly; como ela escrevia, para dar um toque inglês e mais moderno ao anexim), isso passa-lhe ao lado. O Alzheimer foi o vírus malévolo que lhe assaltou o processador do computador central e nada nunca mais nada será como dantes. Aquela Dona Cremilde, aquela menina Cremilde que nunca conheceu um marido, esmerada, dedicada, sempre prestável, sempre simpática, sempre apaixonada por crianças, é hoje um escombro que vive no habitáculo corporal que nos habituámos a amar. Está lá o Cadillac dos nossos sonhos… mas sem motor.  



Por mais estranho, estrangeiro e difícil de dizer que seja o nome, a tradução é bem nossa e percetível, por muito que nos doa: aquilo é demência.


E naquela sala em que ela nunca está sozinha, também neste sofrimento não está só, que não há médicos que valham perante as leis da vida.


São 7 ou 8 colegas que estão num autêntico hotel (Santa Casa da Misericórdia de Marvão), e olham sempre para o eterno programa da tarde que lhes faz companhia. Cumprimento cada uma delas com um aperto de mão, um toque pessoal, um aconchego. Sorrio e olho-as nos olhos. Por vezes não me escapo ao beijo e ao abraço apertado, a quem se agarra a mim como se fosse um guindaste capaz de as tirar dali para fora, lhes pudesse devolver a força anímica e a vida que deixaram para trás com os anos, sem quererem. Cada uma tem a sua história de vida, a sua maleita, a sua consciência mais ou menos clarividente, o seu estado físico mais ou menos debilitado. Conheço-as pela posição que ocupam. Como as crianças na escola e o eterno retrocesso à meninice.


As que ladeiam a minha tia são as mais conscientes e por isso mesmo, as que mais sofrem com   a falta de condição física. Querem mas… não são já capazes. Pergunto-lhes, “e a minha menina? Como é que tem passado?”
E elas contam.
-Ui, ui… tem passado bem mas é muito teimosinha.
- (Isso eu sabia)
- Quando a querem levantar e ela não quer… parece que pesa chumbo e ninguém a consegue mover daqui.
- E de resto?
- Dorme bem, come bem, não chateia ninguém. É um doce.
- (Sempre foi.)



Lá a da ponta é muito engraçada. É uma autêntica grafonola sempre com um tema antigo que trauteia sem parar, noite e dia. Modas dos bailes de Santo António, da Ranginha, dos Barretos ou da Beirã, que deve ter visto nascer enquanto freguesia, com o comboio.
- Minha querida? Então qual é a moda de hoje, meu amor?
Ela ri-se muito e diz “vou bem, vou bem”. Rindo-se reforça, olhando para mim, quando me vê dançar à rancheiro perante as suas músicas, fazendo de palhaço (que eu adoro quando é de vontade. Detesto é que me façam quando não quero. Ai temos porras.) “ai que engraçado… ai que engraçado…”, que se transforma num “ai tão linda, ainda tão linda, ai tão querida”, quando faz festinhas na minha Alice.


Ao lado, em frente, está uma senhora de um extrato social que parece ser diferente, mais 
alto, com outros tiques, conversas e trejeitos. Deveria de estar numa casa com outros hábitos, porque lhe dá sempre muita lida quem é que vai fazer o comer para tanta gente (as colegas que ali estão.)


Há uma senhora que me trata muito bem e diz sempre que se lembra de mim quando eu era pequenino, na Beirã, e que eu ia muita vez para a sua casa. Não me recordo de nada, nem nunca vi ninguém da sua família que me pudesse fazer a “ponte” com esse passado; mas sorrio sempre e digo-lhe que sim.


Muitas de negro, de desgosto por terem perdido os seus maridos, que eram quem bebia e fumava lá em casa, na maior parte dos casos; nunca elas, gostam sempre de me ver, do meu trato. E eu fico feliz. Saio sempre a sentir-me rico.


Uma outra, já com a visão algo “apanhada” pela idade, está sempre com um olhito cerrado e é de poucas conversas. De vez em quando ralham entre si, ou porque uma se esticou nos comentários, ou porque a cantora se cansou do disco e ralhou com uma qualquer que lhe quis meter travão à matinée. Tão engraçadas de se ver. Aquilo é como uma turma de cachopinhas da escola primária, ou de mulheres presidiárias, porque têm entre si a sua hierarquia e cada uma goza de um status muito seu. Não a minha, coitadinha, que se ri para todas e fala para dentro uma língua imperceptível, que é oficial lá no mundo onde ela vive.


Tem dias que vou lá e venho escuro como a noite. De olhos baços, tristes, sem vida, olha para nós como nós para o abismo. Sem conseguir ver o que seja. Anteontem, escondi-me na porta e surgi de rompante, em frente à televisão, para onde olhava com atenção. Num momento de rara lucidez, riu-se para mim e disse: “ Olhó! Então?”
- Então… fui trabalhar! Saí agora. E tu? Está boa? Tudo em cima? Tudo legau?
Ela riu-se e disse que sim. Riu-se mesmo. Riu-se com aquele ar: “agora aparece-me aqui este gajo”. E foi bom. Estivemos de mão dada e fomos passear.


À primeira tentativa fez-se mula e fez força para baixo.
- Então?!?! Não queres vir comigo passear? Anda, senão qualquer dia, as pernocas não querem nada contigo. Anda daí…


As amigas ajudaram. “Vá, vá com o seu… é filho? (algumas ainda procuram)
- Não! É sobrinho, respondem outras. Mas é como se fosse filho. É muito amigo dela.


“Pois sou. Nessa altura não havia infantários. Os meus pais tinham de trabalhar e deixavam-me com ela, a minha avózinha (sua mãe), e a minha tia (que então ficou viúva).


Depois, por vezes, ao final do dia, com a noite, com o frio, dava-lhes pena levarem-me para a rua, e deixavam-me lá ficar a dormir com ela. Tão bem que eu me lembro disso…
Fui o filho que ela nunca teve (porque sempre foi solteira).
Habituou-se a ver-me enquanto tal e eu a ela, como mãe.

Por isso somos tão próximos. Não consegue dizer o meu nome mas, nem precisa. Eu sei que ela sabe quem eu sou. E isso chega-me.”


Como poder beijá-la tanto. Na testa. Quente. Com vida.

Junto do seu altar, da rainha Santa Isabel, na igreja de Nossa Senhora do Carmo, na Beirã,
que arranjavam com tanto esmero

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